Pense Brasil: a pandemia do coronavírus é agravada pelas mazelas das estruturas sociais calcadas na desigualdade e no patrimonialismo
Os professores Aldaíza Sposati e Jailson de Souza e Silva mostraram que a Covid-19 no Brasil colocou a nu o caráter do Estado brasileiro, construído histórica e estruturalmente para atender aos interesses das nossas elites econômicas, que nunca tiveram um projeto de nação. Nesse processo em que a lógica da escravatura se manteve, o Estado, em situações de calamidade, não tem condições de atender a maioria da população. O Estado também não trata os vulneráveis como cidadãos, mas como “coitadinhos”. Mas essa pandemia, afirmam os debatedores, pode criar condições para que superemos o modelo neoliberal de sociedade, hegemônico no mundo há pelo menos quatro décadas.
A Fundação João Mangabeira, ligada ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), realizou nesta segunda-feira, 27 de abril, das 19h30 às 21h30, a oitava edição do Pense Brasil, com o tema Desigualdades e pandemia: o que a doença revela sobre as estruturas sociais brasileiras. Feito de maneira virtual, o debate contou com a participação de Aldaíza Sposati, professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutora em Serviço Social pela PUC-SP, ex-vereadora e ex-secretária das Administrações Regionais (1989-1990) e da Assistência Social (2002/2004) da cidade de São Paulo, e Jailson de Souza e Silva, professor associado da Universidade Federal Fluminense (UFF), graduado em geografia e doutorado em Sociologia da Educação pela PUC-RJ, e fundador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. O presidente da Fundação João Mangabeira, ex-governador da Paraíba e vice-presidente do PSB, Ricardo Coutinho, foi o mediador dos debates.
Na abertura do evento, Ricardo Coutinho fez um balanço das edições anteriores do Pense Brasil, particularmente das três edições digitais realizadas durante o período de isolamento social. Ele lembrou a participação do professor Boaventura de Souza Santos e da deputada Lídice da Matta (PSB-BA), relatora da CPI das fake news, na discussão sobre o papel do Estado e o futuro do mundo pós-pandemia, bem como o modelo de consumo adotado nos últimos 40 anos pelo neoliberalismo; sobre o trabalho diferenciado do governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, no combate ao coronavírus e sobre os efeitos da pandemia na economia, com os professores Ladislau Dowbor e Esther Dweck.
Aldaíza Sposati começou sua exposição afirmando que o coronavírus, embora ataque indistintamente, demonstrou que grande parte da população brasileira – talvez cerca de 50% – é praticamente “invisível”. Invisível para os direitos, para as atenções do Estado. “A prática do isolamento social – fiquem em casa, lavem suas mãos – mostra que nem todos têm efetivamente, a começar a população de rua, um teto para morar. Num recorte de classe social, a presença do vírus mostra as condições precárias de parte da população, mostra um vazio enorme da presença do Estado que possa ofertar condições dignas. Já no governo anterior tivemos a ‘PEC da morte’ que, antes mesmo do coronavírus, fragmentou políticas sociais, retirou recursos da saúde e da assistência social. Já a reforma da Previdência reduziu significativamente a proteção social e agora fala-se de proteção social como se fosse alguma coisa surpreendente, sem avaliar a destruição de políticas sociais que vem sendo feita”, afirmou.
Para Aldaíza, se acabarmos com essa invisibilidade poderemos traçar estratégias pós-pandemia para que de fato direitos sociais possam ser estabelecidos com outro padrão de universalização. Mas hoje, ela diz, “está em andamento uma operação de extermínio de parte da população. Nesta situação, fala-se muito de proteção social, mas ela está ausente nas periferias. Essa ausência de proteção social, de condições para a prática de isolamento social, do distanciamento social – que são as únicas formas de enfretamento do vírus hoje, já que não temos uma descoberta de vacina ou sequer da terapêutica –, temos uma situação que eu diria que fica próxima de um genocídio”.
Ricardo Coutinho afirmou que é precioso acumular forças e presença popular para que a invisibilidade possa voltar a ser tema de ações concretas e de responsabilidade por parte da sociedade e dos poderes públicos. “Incrível é que, em cem anos, da Gripe Espanhola para a Covid-19, o homem chegou à Lua, desenvolveu tecnologia de informação e, ao mesmo tempo, está sendo vergonhosamente vencido por uma pandemia causada por um vírus. E se não fosse o esforço da China de em três semanas detectar geneticamente esse vírus, nós talvez estivéssemos em uma situação mais delicada do que essa que nós estamos”, ponderou.
Em sua intervenção, Jailson Souza e Silva disse que era um “paraibano de adoção”, filho de imigrantes nordestinos, e elogiou o trabalho de Ricardo Coutinho como governador, que atendeu a muitas demandas populares, e afirmou que Aldaíza Sposati se tornou uma figura paradigmática no enfrentamento das questões sociais. Saudou também a Fundação João Mangabeira, porque disse que é muito raro que os partidos estejam produzindo esse tipo de iniciativa. “Os partidos brasileiros, principalmente os do campo democrático, precisam atualizar seus programas, criar novas formas de pensar as questões brasileiras, colocar novos paradigmas, o que historicamente não fizeram. Esse tipo de proposição que vocês estão fazendo me dá esperanças de que efetivamente uma nova agenda programática possa ocupar o campo democrático e que possamos dar resposta a esses problemas apontados por Aldaíza e Ricardo Coutinho”.
Jailson lembrou que ele não é apenas um intelectual e um professor, mas, antes de tudo, um filho de migrantes nordestinos, nascido na periferia do Rio de Janeiro, na favela –“sou favelado com muito orgulho” – e que sua organização, o Observatório de Favelas, funciona na Maré há 30 anos e que hoje ele dirige uma think thank, o Instituto Maria e João Aleixo – dois paraibanos, ele esclarece – que forma novas lideranças periféricas. “Outra referência fundamental para a minha reflexão: eu sou negro. Sou negro, favelado do Rio e de origem nordestina. Então, é fundamental pensar essas questões a partir da questão racial, a partir da questão da negritude”.
Ele se perguntou o que é o Estado brasileiro historicamente. “Ele teve dois papeis fundamentais: primeiro, de controle dos corpos, principalmente dos corpos negros, de escravos, dos mais pobres; depois, a estruturação de uma forma social e econômica que permite a transferência da riqueza do país para uma pequena minoria, muito demarcada: homens, brancos, ricos e heteronormativos. Por isso, temos um grupo social específico que se apodera do poder e de todas as vantagens econômicas derivadas da nossa estrutura social. Assim, temos um Estado que não consegue cumprir o papel básico no sentido de prover direitos à maioria da população”.
Para Jailson, a desigualdade brasileira se assenta em três elementos fundamentais à sua reprodução: o machismo, o racismo institucional – que faz com que sistematicamente os negros tenham raras oportunidades de chegar a determinadas posições, ocupem pouco espaço no poder, mas tenham grandes presença nos cemitérios, orfanatos e nas prisões – e o que ele chama de “patrimonialismo institucional”.
“Temos o velho patrimonialismo, que era marcado pelo fisiologismo, pelo clientelismo, pelo nepotismo. O patrimonialismo institucional é o processo sistemático de transferência de riqueza para um grupo social específico. Isso acontece de várias formas: primeiro, é o processo de alocação de equipamentos e serviços nas cidades que privilegia as áreas mais ricas. Veja-se o exemplo do Metrô na Barra da Tijuca que custou R$ 10 bilhões. Os ricos pagam muito menos impostos, mas não se consegue fazer uma reforma tributária. A gente não consegue fazer uma política de crédito que deixe de privilegiar uma Ambev da vida, uma JBS da vida, e favoreça empresários negros”, ele afirmou. Outra característica desse patrimonialismo institucional, segundo ele, é a chamada ideologia “meritocrática”, que faz com que grupos sociais específicos – brancos e homens, normalmente – ocupem altos cargos do Estado nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. “Não é trivial procuradores e juízes brancos, ricos e de classe média colocando na cadeia 700 mil jovens negros das periferias e favelas. Chegamos a 62 mil assassinatos, especialmente jovens negros”, ele lembrou.
O professor Jailson assegurou que outro elemento importante a considerar é a representação que se faz das periferias. Elas não podem ser pensadas apenas como lugares de miséria, sem saúde, sem educação e sem lei; não podem ser pensadas apenas em suas demandas e necessidades, mas também nas suas construções, invenções, articulações, na capacidade de construir, contra o Estado e o mercado, meios possíveis de habitar a cidade. “São milhões de trabalhadores, negros, brancos, índios, que são fundamentais do ponto de vista da solidariedade, pois têm as qualidades que os grupos formais perderam há muito tempo: a capacidade de conviver, de ser solidário, de encontrar soluções coletivas. Essa é a minha esperança. É fundamental falar não apenas da pandemia, mas do que virá depois”.
Ricardo Coutinho destacou que o grande desafio é exatamente o que vem depois do coronavírus, uma nova agenda. Para ele, a percepção geral é que o poder público é muito distante e, muitas vezes, um inimigo. Ressaltou que nas periferias existe a pobreza e a violência das milícias, mas também a solidariedade de seus habitantes. “É a pedagogia da convivência. Existe uma lógica dentro dessas comunidades, que é uma lógica muita fraterna, mesmo que elas vivam em locais onde existe uma violência intrínseca, provocada pela existência das milícias e do tráfico. E essa fraternidade ajuda as pessoas a existir e a sonhar”, ele afirmou.
Em seguida, Ricardo Coutinho perguntou aos palestrantes como as desigualdades que atingem a população brasileira se revelam de forma mais intensa durante a pandemia e qual viés – gênero, raça, espaços urbanos – se torna mais acirrado.
Aldaíza Sposati respondeu, apoiando-se na fala do Jailson, que não temos efetivamente um Estado empenhado na distribuição de renda. Citou os Estados Unidos, onde quem fica desempregado perde o seguro saúde, que é associada à questão do trabalho e, consequentemente, não tem nem emprego nem assistência de saúde. “No Brasil, apesar de o SUS, o sistema público de saúde, ser significativo, ele não tem uma presença em todo o país em todos os lugares onde seria necessário. Por outro lado, esse governo está desprezando o sistema único de assistência social ao adotar determinadas práticas que, ao invés de manter os benefícios eventuais bastante desterritorializados, isto é, espalhados pelos 8.500 CAS, centralizam tudo no governo federal, porque não querem que esses recursos recebam alguma chancela de prefeitos. Está tudo concentrado no sistema bancário e que não permite que haja um espalhamento”.
Ela também abordou a reforma tributária, lembrando que uma das maiores desigualdades que a tributação estabelece é a isenção como um alívio do imposto. Esse sistema considera para cada adolescente um desconto mensal R$ 180, além de um desconto similar para cada idoso que viva na família. “Ora, nenhum programa de programa de governo, como o Bolsa Família, consegue distribuir R$ 180 por criança. Então, a questão que fica é o seguinte: será que tem criança que vale mais do que outra? Porque na reforma tributária na verdade é descontado um valor muito maior do que o do Bolsa Família? Porque nós não temos uma taxação de impostos dessa concentração de riqueza com outro poder de distribuidade? Eu diria que são decisões da reforma que são acumuladoras de capital e seletivas em termos da população. Fico perplexa. Crianças são tratadas de maneira diferente: uma recebe R$ 180 enquanto outra não chega nem a R$ 80”.
Aldaíza retomou a “virada de polo” sugerida por Jailson, de trabalhar com “potência, não com carência”. “Se não for assim, não estaremos trabalhando com cidadania, mas fazendo cidadania ao contrário, pois seria preciso não ter nada para ser atendido. Assim, não é porque uma pessoa é brasileira que ela tem direitos, mas porque é vulnerável. Essas pessoas não são vulneráveis; são pessoas que foram vulnerabilizadas. Há uma certa lógica que dociliza essas pessoas vulnerabilizadas para reproduzir os pobrezinhos, os coitadinhos e os carentes, quando na verdade são cidadãos a quem é negada atenção. Por isso, quando se diz que devemos mudar o polo de carência para potência, isso não pode significar deixar o Estado à vontade, não sendo responsável pelos direitos da população. Num olhar de cidadão, é a potência que está em questão, mas essa potência não pode ser aquilo que quer o neoliberalismo, que cada um faça as coisas por si mesmo, deixando o Estado ser o Estado mínimo”.
Ela acrescentou que a construção estrutural da desigualdade também passa pela religião. “Ser pobre é o caminho do paraíso”, pregava a Igreja Católica, e isso dociliza os vulnerabilizados. Ela observou que a teologia da prosperidade do neopentecostalismo não vê as coisas dessa maneira, pois reforça o papel do indivíduo, mas ignora que o Estado tem recursos, mas não tem uma política redistribuitiva. “Eu espero que o pós-pandemia seja a demonstração do fracasso do neoliberalismo. Temos que mostrar que o neoliberalismo nos leva à morte – da natureza e a nossa”.
O professor Jailson afirmou que o Estado brasileiro estruturalmente foi construído para atender aos interesses da elite econômica. “Temos elites econômicas, mas não temos elites políticas, porque não há um projeto de nação. A estrutura desse Estado vem de 300 anos de colonização e de escravidão. Por isso essa estrutura, em situações de calamidade, não tem a capacidade de atender aos mais empobrecidos porque não está no seu projeto de nação. Acho que essa palavra é fundamental: não temos nem pobres nem ricos no Brasil, mas enriquecidos e empobrecidos. Temos pessoas violentadas em seus direitos fundamentais. É por isso que pessoas como eu, intelectual originário da favela, têm que romper com as perspectivas que o Estado e as classes dominante nos impuseram, de nos colocar no papel da vulnerabilidade. A primeira coisa que a gente aprende na favela é ter pouca autoestima: ter vergonha da nossa cor, de estudar na escola pública, de morar em um lugar estigmatizado. Por isso, conquistar o direito de ser reconhecido como cidadão é fundamental”, explicou.
Para ele, a mulher negra e favelada é um dos setores mais impactados por essa estrutura perversa, agravada com a pandemia. “Ter um foco nessa mulher pode nos ajudar a minorar esse impacto dessa situação atual. Mas isso não é suficiente; é preciso saber como é que nós aprendemos, com essa pandemia, a construir novas proposições que nos permitam dar uma resposta mais ampla. Tanto o SUS quanto o SUAS foram produtos da nossa democracia. Essa resposta mais ampla é uma agenda para o próximo período. As políticas públicas devem ser construídas cada vez mais em mobilização com a sociedade civil”, concluiu.
Ricardo Coutinho assinalou que o SUS foi produto talvez do maior movimento pela reforma sanitária que o país já viu e que hoje tem uma estrutura que teoricamente pode dar respostas a momentos como esse. “É importante ressaltar que o SUS talvez esteja sofrendo o seu mais duro golpe. O governo Bolsonaro acabou com o Mais Médicos, o que não é pouca coisa – antes havia 700 municípios brasileiros que nunca tiveram um médico. O governo Bolsonaro e o Mandetta acabaram com o Mais Médicos, com a Farmácia Básica, mudaram a forma de financiamento da atenção primária à saúde – ou seja, estavam numa ofensiva enorme para avançar contra o SUS. Vejam o que fizeram nos EUA para derrubar o programa de Obama, que era uma coisa diminuta em relação ao SUS”.
Ricardo Coutinho concluiu lembrando que a elite brasileira é a única elite do mundo que não tem um projeto de nação. “Se você olhar para qualquer país, até aqui mesmo na América do Sul, você percebe que há segmentos da elite que, de alguma maneira, pensam na nação. A nossa, por incrível que pareça, só pensa em ganhar dinheiro. Nessa pandemia, em que pesem as justas preocupações com a economia, é impressionante a reação de empresários. Vejam as pressões para reabertura do comércio, as carreatas. Ou seja, eles têm um senso financeiro aguçado para concentrar cada vez mais e um senso humanitário zero”, ele finalizou.
Os professores Aldaíza Sposati e Jailson de Souza e Silva mostraram que a Covid-19 no Brasil colocou a nu o caráter do Estado brasileiro, construído histórica e estruturalmente para atender aos interesses das nossas elites econômicas, que nunca tiveram um projeto de nação. Nesse processo em que a lógica da escravatura se manteve, o Estado, em situações de calamidade, não tem condições de atender a maioria da população. O Estado também não trata os vulneráveis como cidadãos, mas como “coitadinhos”. Mas essa pandemia, afirmam os debatedores, pode criar condições para que superemos o modelo neoliberal de sociedade, hegemônico no mundo há pelo menos quatro décadas.
A Fundação João Mangabeira, ligada ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), realizou nesta segunda-feira, 27 de abril, das 19h30 às 21h30, a oitava edição do Pense Brasil, com o tema Desigualdades e pandemia: o que a doença revela sobre as estruturas sociais brasileiras. Feito de maneira virtual, o debate contou com a participação de Aldaíza Sposati, professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutora em Serviço Social pela PUC-SP, ex-vereadora e ex-secretária das Administrações Regionais (1989-1990) e da Assistência Social (2002/2004) da cidade de São Paulo, e Jailson de Souza e Silva, professor associado da Universidade Federal Fluminense (UFF), graduado em geografia e doutorado em Sociologia da Educação pela PUC-RJ, e fundador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. O presidente da Fundação João Mangabeira, ex-governador da Paraíba e vice-presidente do PSB, Ricardo Coutinho, foi o mediador dos debates.
Na abertura do evento, Ricardo Coutinho fez um balanço das edições anteriores do Pense Brasil, particularmente das três edições digitais realizadas durante o período de isolamento social. Ele lembrou a participação do professor Boaventura de Souza Santos e da deputada Lídice da Matta (PSB-BA), relatora da CPI das fake news, na discussão sobre o papel do Estado e o futuro do mundo pós-pandemia, bem como o modelo de consumo adotado nos últimos 40 anos pelo neoliberalismo; sobre o trabalho diferenciado do governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, no combate ao coronavírus e sobre os efeitos da pandemia na economia, com os professores Ladislau Dowbor e Esther Dweck.
Aldaíza Sposati começou sua exposição afirmando que o coronavírus, embora ataque indistintamente, demonstrou que grande parte da população brasileira – talvez cerca de 50% – é praticamente “invisível”. Invisível para os direitos, para as atenções do Estado. “A prática do isolamento social – fiquem em casa, lavem suas mãos – mostra que nem todos têm efetivamente, a começar a população de rua, um teto para morar. Num recorte de classe social, a presença do vírus mostra as condições precárias de parte da população, mostra um vazio enorme da presença do Estado que possa ofertar condições dignas. Já no governo anterior tivemos a ‘PEC da morte’ que, antes mesmo do coronavírus, fragmentou políticas sociais, retirou recursos da saúde e da assistência social. Já a reforma da Previdência reduziu significativamente a proteção social e agora fala-se de proteção social como se fosse alguma coisa surpreendente, sem avaliar a destruição de políticas sociais que vem sendo feita”, afirmou.
Para Aldaíza, se acabarmos com essa invisibilidade poderemos traçar estratégias pós-pandemia para que de fato direitos sociais possam ser estabelecidos com outro padrão de universalização. Mas hoje, ela diz, “está em andamento uma operação de extermínio de parte da população. Nesta situação, fala-se muito de proteção social, mas ela está ausente nas periferias. Essa ausência de proteção social, de condições para a prática de isolamento social, do distanciamento social – que são as únicas formas de enfretamento do vírus hoje, já que não temos uma descoberta de vacina ou sequer da terapêutica –, temos uma situação que eu diria que fica próxima de um genocídio”.
Ricardo Coutinho afirmou que é precioso acumular forças e presença popular para que a invisibilidade possa voltar a ser tema de ações concretas e de responsabilidade por parte da sociedade e dos poderes públicos. “Incrível é que, em cem anos, da Gripe Espanhola para a Covid-19, o homem chegou à Lua, desenvolveu tecnologia de informação e, ao mesmo tempo, está sendo vergonhosamente vencido por uma pandemia causada por um vírus. E se não fosse o esforço da China de em três semanas detectar geneticamente esse vírus, nós talvez estivéssemos em uma situação mais delicada do que essa que nós estamos”, ponderou.
Em sua intervenção, Jailson Souza e Silva disse que era um “paraibano de adoção”, filho de imigrantes nordestinos, e elogiou o trabalho de Ricardo Coutinho como governador, que atendeu a muitas demandas populares, e afirmou que Aldaíza Sposati se tornou uma figura paradigmática no enfrentamento das questões sociais. Saudou também a Fundação João Mangabeira, porque disse que é muito raro que os partidos estejam produzindo esse tipo de iniciativa. “Os partidos brasileiros, principalmente os do campo democrático, precisam atualizar seus programas, criar novas formas de pensar as questões brasileiras, colocar novos paradigmas, o que historicamente não fizeram. Esse tipo de proposição que vocês estão fazendo me dá esperanças de que efetivamente uma nova agenda programática possa ocupar o campo democrático e que possamos dar resposta a esses problemas apontados por Aldaíza e Ricardo Coutinho”.
Jailson lembrou que ele não é apenas um intelectual e um professor, mas, antes de tudo, um filho de migrantes nordestinos, nascido na periferia do Rio de Janeiro, na favela –“sou favelado com muito orgulho” – e que sua organização, o Observatório de Favelas, funciona na Maré há 30 anos e que hoje ele dirige uma think thank, o Instituto Maria e João Aleixo – dois paraibanos, ele esclarece – que forma novas lideranças periféricas. “Outra referência fundamental para a minha reflexão: eu sou negro. Sou negro, favelado do Rio e de origem nordestina. Então, é fundamental pensar essas questões a partir da questão racial, a partir da questão da negritude”.
Ele se perguntou o que é o Estado brasileiro historicamente. “Ele teve dois papeis fundamentais: primeiro, de controle dos corpos, principalmente dos corpos negros, de escravos, dos mais pobres; depois, a estruturação de uma forma social e econômica que permite a transferência da riqueza do país para uma pequena minoria, muito demarcada: homens, brancos, ricos e heteronormativos. Por isso, temos um grupo social específico que se apodera do poder e de todas as vantagens econômicas derivadas da nossa estrutura social. Assim, temos um Estado que não consegue cumprir o papel básico no sentido de prover direitos à maioria da população”.
Para Jailson, a desigualdade brasileira se assenta em três elementos fundamentais à sua reprodução: o machismo, o racismo institucional – que faz com que sistematicamente os negros tenham raras oportunidades de chegar a determinadas posições, ocupem pouco espaço no poder, mas tenham grandes presença nos cemitérios, orfanatos e nas prisões – e o que ele chama de “patrimonialismo institucional”.
“Temos o velho patrimonialismo, que era marcado pelo fisiologismo, pelo clientelismo, pelo nepotismo. O patrimonialismo institucional é o processo sistemático de transferência de riqueza para um grupo social específico. Isso acontece de várias formas: primeiro, é o processo de alocação de equipamentos e serviços nas cidades que privilegia as áreas mais ricas. Veja-se o exemplo do Metrô na Barra da Tijuca que custou R$ 10 bilhões. Os ricos pagam muito menos impostos, mas não se consegue fazer uma reforma tributária. A gente não consegue fazer uma política de crédito que deixe de privilegiar uma Ambev da vida, uma JBS da vida, e favoreça empresários negros”, ele afirmou. Outra característica desse patrimonialismo institucional, segundo ele, é a chamada ideologia “meritocrática”, que faz com que grupos sociais específicos – brancos e homens, normalmente – ocupem altos cargos do Estado nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. “Não é trivial procuradores e juízes brancos, ricos e de classe média colocando na cadeia 700 mil jovens negros das periferias e favelas. Chegamos a 62 mil assassinatos, especialmente jovens negros”, ele lembrou.
O professor Jailson assegurou que outro elemento importante a considerar é a representação que se faz das periferias. Elas não podem ser pensadas apenas como lugares de miséria, sem saúde, sem educação e sem lei; não podem ser pensadas apenas em suas demandas e necessidades, mas também nas suas construções, invenções, articulações, na capacidade de construir, contra o Estado e o mercado, meios possíveis de habitar a cidade. “São milhões de trabalhadores, negros, brancos, índios, que são fundamentais do ponto de vista da solidariedade, pois têm as qualidades que os grupos formais perderam há muito tempo: a capacidade de conviver, de ser solidário, de encontrar soluções coletivas. Essa é a minha esperança. É fundamental falar não apenas da pandemia, mas do que virá depois”.
Ricardo Coutinho destacou que o grande desafio é exatamente o que vem depois do coronavírus, uma nova agenda. Para ele, a percepção geral é que o poder público é muito distante e, muitas vezes, um inimigo. Ressaltou que nas periferias existe a pobreza e a violência das milícias, mas também a solidariedade de seus habitantes. “É a pedagogia da convivência. Existe uma lógica dentro dessas comunidades, que é uma lógica muita fraterna, mesmo que elas vivam em locais onde existe uma violência intrínseca, provocada pela existência das milícias e do tráfico. E essa fraternidade ajuda as pessoas a existir e a sonhar”, ele afirmou.
Em seguida, Ricardo Coutinho perguntou aos palestrantes como as desigualdades que atingem a população brasileira se revelam de forma mais intensa durante a pandemia e qual viés – gênero, raça, espaços urbanos – se torna mais acirrado.
Aldaíza Sposati respondeu, apoiando-se na fala do Jailson, que não temos efetivamente um Estado empenhado na distribuição de renda. Citou os Estados Unidos, onde quem fica desempregado perde o seguro saúde, que é associada à questão do trabalho e, consequentemente, não tem nem emprego nem assistência de saúde. “No Brasil, apesar de o SUS, o sistema público de saúde, ser significativo, ele não tem uma presença em todo o país em todos os lugares onde seria necessário. Por outro lado, esse governo está desprezando o sistema único de assistência social ao adotar determinadas práticas que, ao invés de manter os benefícios eventuais bastante desterritorializados, isto é, espalhados pelos 8.500 CAS, centralizam tudo no governo federal, porque não querem que esses recursos recebam alguma chancela de prefeitos. Está tudo concentrado no sistema bancário e que não permite que haja um espalhamento”.
Ela também abordou a reforma tributária, lembrando que uma das maiores desigualdades que a tributação estabelece é a isenção como um alívio do imposto. Esse sistema considera para cada adolescente um desconto mensal R$ 180, além de um desconto similar para cada idoso que viva na família. “Ora, nenhum programa de programa de governo, como o Bolsa Família, consegue distribuir R$ 180 por criança. Então, a questão que fica é o seguinte: será que tem criança que vale mais do que outra? Porque na reforma tributária na verdade é descontado um valor muito maior do que o do Bolsa Família? Porque nós não temos uma taxação de impostos dessa concentração de riqueza com outro poder de distribuidade? Eu diria que são decisões da reforma que são acumuladoras de capital e seletivas em termos da população. Fico perplexa. Crianças são tratadas de maneira diferente: uma recebe R$ 180 enquanto outra não chega nem a R$ 80”.
Aldaíza retomou a “virada de polo” sugerida por Jailson, de trabalhar com “potência, não com carência”. “Se não for assim, não estaremos trabalhando com cidadania, mas fazendo cidadania ao contrário, pois seria preciso não ter nada para ser atendido. Assim, não é porque uma pessoa é brasileira que ela tem direitos, mas porque é vulnerável. Essas pessoas não são vulneráveis; são pessoas que foram vulnerabilizadas. Há uma certa lógica que dociliza essas pessoas vulnerabilizadas para reproduzir os pobrezinhos, os coitadinhos e os carentes, quando na verdade são cidadãos a quem é negada atenção. Por isso, quando se diz que devemos mudar o polo de carência para potência, isso não pode significar deixar o Estado à vontade, não sendo responsável pelos direitos da população. Num olhar de cidadão, é a potência que está em questão, mas essa potência não pode ser aquilo que quer o neoliberalismo, que cada um faça as coisas por si mesmo, deixando o Estado ser o Estado mínimo”.
Ela acrescentou que a construção estrutural da desigualdade também passa pela religião. “Ser pobre é o caminho do paraíso”, pregava a Igreja Católica, e isso dociliza os vulnerabilizados. Ela observou que a teologia da prosperidade do neopentecostalismo não vê as coisas dessa maneira, pois reforça o papel do indivíduo, mas ignora que o Estado tem recursos, mas não tem uma política redistribuitiva. “Eu espero que o pós-pandemia seja a demonstração do fracasso do neoliberalismo. Temos que mostrar que o neoliberalismo nos leva à morte – da natureza e a nossa”.
O professor Jailson afirmou que o Estado brasileiro estruturalmente foi construído para atender aos interesses da elite econômica. “Temos elites econômicas, mas não temos elites políticas, porque não há um projeto de nação. A estrutura desse Estado vem de 300 anos de colonização e de escravidão. Por isso essa estrutura, em situações de calamidade, não tem a capacidade de atender aos mais empobrecidos porque não está no seu projeto de nação. Acho que essa palavra é fundamental: não temos nem pobres nem ricos no Brasil, mas enriquecidos e empobrecidos. Temos pessoas violentadas em seus direitos fundamentais. É por isso que pessoas como eu, intelectual originário da favela, têm que romper com as perspectivas que o Estado e as classes dominante nos impuseram, de nos colocar no papel da vulnerabilidade. A primeira coisa que a gente aprende na favela é ter pouca autoestima: ter vergonha da nossa cor, de estudar na escola pública, de morar em um lugar estigmatizado. Por isso, conquistar o direito de ser reconhecido como cidadão é fundamental”, explicou.
Para ele, a mulher negra e favelada é um dos setores mais impactados por essa estrutura perversa, agravada com a pandemia. “Ter um foco nessa mulher pode nos ajudar a minorar esse impacto dessa situação atual. Mas isso não é suficiente; é preciso saber como é que nós aprendemos, com essa pandemia, a construir novas proposições que nos permitam dar uma resposta mais ampla. Tanto o SUS quanto o SUAS foram produtos da nossa democracia. Essa resposta mais ampla é uma agenda para o próximo período. As políticas públicas devem ser construídas cada vez mais em mobilização com a sociedade civil”, concluiu.
Ricardo Coutinho assinalou que o SUS foi produto talvez do maior movimento pela reforma sanitária que o país já viu e que hoje tem uma estrutura que teoricamente pode dar respostas a momentos como esse. “É importante ressaltar que o SUS talvez esteja sofrendo o seu mais duro golpe. O governo Bolsonaro acabou com o Mais Médicos, o que não é pouca coisa – antes havia 700 municípios brasileiros que nunca tiveram um médico. O governo Bolsonaro e o Mandetta acabaram com o Mais Médicos, com a Farmácia Básica, mudaram a forma de financiamento da atenção primária à saúde – ou seja, estavam numa ofensiva enorme para avançar contra o SUS. Vejam o que fizeram nos EUA para derrubar o programa de Obama, que era uma coisa diminuta em relação ao SUS”.
Ricardo Coutinho concluiu lembrando que a elite brasileira é a única elite do mundo que não tem um projeto de nação. “Se você olhar para qualquer país, até aqui mesmo na América do Sul, você percebe que há segmentos da elite que, de alguma maneira, pensam na nação. A nossa, por incrível que pareça, só pensa em ganhar dinheiro. Nessa pandemia, em que pesem as justas preocupações com a economia, é impressionante a reação de empresários. Vejam as pressões para reabertura do comércio, as carreatas. Ou seja, eles têm um senso financeiro aguçado para concentrar cada vez mais e um senso humanitário zero”, ele finalizou.