Resistência democrática e a defesa da legalidade foram temas discutidos no 8º Pense Brasil Virtual
A história do Brasil é cheia de interrupções democráticas e eventos autoritários. Passamos 300 anos com a escravidão reinante e ainda hoje o racismo se faz presente no dia a dia. Também convivemos com um dos maiores índices de concentração de riquezas do mundo, ou seja, temos um enorme fosso social. E ao longo das últimas décadas presenciamos intervenções ou tentativas de intervenções militares no país. Por fim, assistimos recentemente a destituição de uma presidenta sem crime de responsabilidade em um impeachment orquestrado pela elite e outros setores da sociedade.
Após 35 anos de certa normalidade democrática, estamos novamente falando de intervenção militar, ditadura e resistência, e para estabelecer reflexões sobre esses assuntos, a oitava edição do Pense Brasil Virtual, no último dia 15 de junho, teve como tema a resistência democrática, defesa da legalidade e cenários de saída da crise.
Realizado pela Fundação João Mangabeira (FJM), do Partido Socialista Brasileiro (PSB), o ciclo de debates reúne de forma virtual notáveis personalidades brasileiras para discutir questões importantes do mundo e do Brasil contemporâneo, a fim de propor análises e pensar em maneiras de sair da atual crise sanitária, econômica e política.
Moderado pelo presidente da FJM e ex-governador da Paraíba, Ricardo Coutinho, a conferência virtual da última segunda-feira, 15, reuniu o ex-governador de São Paulo Márcio França; a presidente da Associação de Juízes pela Democracia – AJD, Valdete Severo; e Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-ministro da justiça e da educação.
Ao iniciar seu exame de como chegamos a esse ponto em nossa história, Tarso Genro fez um apanhado histórico para a busca de um raciocínio de como chegamos ao Brasil bolsonarista. “Infelizmente ainda não conseguimos constituir no campo da esquerda (hoje, na conjuntura, todas as pessoas que defendem o Estado de Direito) conceitos unificadores fundamentais com vocação estratégica de poder”, pontuou o ex-ministro.
Valdete Severo se declarou inquieta para saber como conseguimos chegar ao estágio em que estamos, quando precisamos discutir assuntos que estão sendo colocados de novo em xeque, e destacou a impossibilidade de fazermos resistência democrática se não compreendermos como chegamos até aqui. “Precisamos entender o fato de que somos estruturados por uma lógica de racismo e patriarcado, e conseguimos perceber isso em práticas atuais. Há reflexos tão fortes, que em 2015 aprovamos uma lei em relação ao trabalho doméstico que ainda não equipara essas empregadas aos demais trabalhadores e tem previsões que são ainda escravistas”, expõe. Valdete lembra que no Brasil nunca tivemos um projeto de nação. “Em uma visão mais recente, houve uma completa ausência de compromisso com o pacto que firmamos em 1988. Imediatamente a partir de sua promulgação, o que fizemos foi boicotá-la, e agora vemos uma atuação coordenada dos diversos poderes nesse boicote. Além disso, chegamos até aqui porque essas marcas históricas que nos acompanham se somou à demissão de vários setores da sociedade de uma atuação concreta no sentido de efetivar um projeto de sociedade. O aprofundamento disso se deu com a crise econômica e política, e a forma como o governo enfrentou os movimentos sociais em 2013 até chegamos em 2016 com o golpe, naquela sessão do Congresso Nacional em que inscrevemos o que viveríamos nos próximos anos. Ali abrimos uma caixa de Pandora porque desrespeitamos os direitos mais básicos, dissociados de qualquer convívio democrático.
Analisando o momento atual, Márcio França ressaltou que as pessoas hoje no Brasil não se sentem representadas pelos partidos políticos e lembrou que no país, nenhum partido elege diretamente seus presidentes. “Após quatro mandatos houve um esgotamento, até natural, nos governos do PT e que produziu sentimentos antipetistas muito fortes. O poder executivo estava então pronto para ser entregue para alguma outra força que não fosse o petismo e o episódio da facada no então candidato Jair Bolsonaro fez com que ele – que já tinha um certo appeal entre eleitores – ficasse de fora do processo de campanha pela situação de saúde e se tornasse um grande fenômeno.” França evocou em seguida o acidente que vitimou em 2014 o então candidato a presidente Eduardo Campos, e que fez com que sua vice, Marina Silva, alcançasse no dia um pico de 42% em intenções de voto no Brasil, segundo pesquisas do partido. Também lembrou que após a ocorrência em Juiz de Fora com Jair Bolsonaro, o principal programa televisivo semanal do país dedicou três quadros ao incidente.
Ao aprofundar o assunto da influência da imprensa e do judiciário da política e em defesa da legalidade, Ricardo Coutinho pediu uma análise atual apontando casos em que a convicção de agentes valeu muito mais que a concretude de provas, com direito a espetáculos midiáticos. Valdete Severo trouxe a informação de que esse foi sempre um problema que acompanhou o direito, porém havia uma ilusão de que o direito não era tão permeado pela política e que a política não poderia instrumentalizar como tem feito ultimamente os órgãos do poder judiciário. “Com o esgotamento das instituições que vivemos hoje, as máscaras caem e o que acontece nos últimos tempos – o golpe jurídico e parlamentar contra a presidenta Dilma, antes mesmo do lawfare contra o presidente Lula é um exemplo disso -, não é uma questão simples de se resolver. É preciso que exijamos que o direito aja de acordo com o que deseja a maioria da população: não apenas com a vontade episódica do poder político e econômico instituído. Precisamos resolver a forma como lidar com a politização do judiciário e judicialização da política, e exigirmos que todas as instâncias do poder judiciário respeitem a Constituição”, aponta.
Tarso Genro salienta que todas as decisões fundamentais do Supremo Tribunal Federal sempre são uma confluência do direito com a política. “A diferença hoje é que mudaram de maneira radical as formas de legitimação do Estado de Direito. As formas tradicionais se davam através da aplicação direta do sistema normativo com as devidas mediações políticas e jurídicas que a Constituição permite, dentro de uma ordem estabelecida. Agora as formas de legitimação do Estado Social e dos seus governos mudaram completamente, porque temos um preâmbulo da Constituição que orienta todo o sistema normativo que vem abaixo dele. E orienta dizendo que o Estado brasileiro adota determinadas características sociais, econômicas e de relacionamento entre as classes sociais dentro dos padrões sociais democráticos que a modernidade nos trouxe. A legitimidade do Estado Social nosso, inscrito na Constituição de 88, não se faz mais simplesmente pela observação formal do sistema normativo e sim pelo cumprimento da efetividade dos direitos fundamentais. Isso foi revertido de maneira radical, especialmente no governo Bolsonaro, com a consequência de que o STF, que tem o direito e a finalidade de ser o guardião da Constituição, não estar conseguido promover a efetividade desses direitos fundamentais”, assinala.
“É evidente que toda essa maneira de fazer a publicidade e divulgação nos meios de comunicação foram fazendo com que cada membro do judiciário envolvido em operações anti-corrupção estivesse se sentindo um pouco obrigado a manter uma certa maioria de aprovação na opinião pública, que nem sempre tem a ver com o direito e pode levar a injustiças”, completou o ex-governador Márcio França.
Após os pareceres, Ricardo Coutinho desvelou o absurdo no fato de que um juiz, depois de ter vazado grampos ilegalmente e interferido no processo eleitoral, ter se tornado um ministro do vencedor da eleição. “Demonstrou um comportamento completamente antiético e isso determinou completamente esse presente vivido no Brasil. Assim como também tem sido determinante a posição da nossa mídia que, de uma crueldade impressionante, consegue destruir e construir o que quer”.
Ao questionar sobre as avaliações jurídica, política e institucional de retirar Jair Bolsonaro do poder – e se via impeachment ou cassação da chapa -, Ricardo Coutinho observa que vários setores democráticos têm discutido muito uma série de ocorrências e supostos crimes do presidente, não só eleitorais, mas também contra a saúde pública. “É um crime real e concreto, em que o presidente está empurrando uma população, enquanto autoridade máxima do país, para que saia sem máscaras, pegue nas pessoas e se aglomere. Isso é algo muito sério e Bolsonaro é o único chefe de Estado no mundo que promove esse tipo de desconstrução de medidas sanitárias fundamentais à permanência da vida coletiva”.
Márcio França ressalta que um impeachment deve ser construído de maneira muito ampla com a sociedade, e pressupõe que ainda há mais de 30% da população que apoia o governo. “Daqui a poucos meses teremos eleições municipais e o resultado será decisivo nesse processo. Se houver uma situação que produza uma vitória acachapante de forças democráticas, é um sinal de que povo decidiu que o caminho será exclui-lo, e assim é esperado um recuo”, opina França.
Para Tarso Genro, o ideal seria fazer uma avaliação dos custos da permanência do presidente no poder e convencê-lo a renunciar. “Outra possibilidade seria formar uma maioria política no Congresso para promover o impedimento do presidente. As pessoas dizem que seria uma solução traumática, mas muito mais grave são as ameaças fascistas que pendem sobre o Estado brasileiro que os possíveis traumas de mais um impeachment”, afirma.
“Inclusive as instituições já estão cansadas de emitir notas de repúdio e também de fazer pedidos de impeachment. Há realmente uma sensação de cansaço em se elencar tantas práticas criminosas por parte de quem ocupa a presidência da república”, acrescenta Valdete Severo. “São atos escandalosos contra a democracia, contra as noções mais básicas de república e de humanidade, diariamente. Talvez ainda não tenhamos quem substitui-lo, e é um processo que devemos construir. É certo que de algum modo democrático temos que urgentemente mudar o rumo dessa história. Não dá para aguardar 2022”, finaliza Valdete.